quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

No leito espúrio dos amantes

Havia três meses que a mulher não cedia aos apelos do marido:

-Assim, fedido, não quero!

Sim, ele andava mesmo muito fedido. Saía do trabalho seboso, se aboletava no bar, comia cebola e salsichas em conserva, bebia cachaça e, ao invés das pastilhas de eucalipto vinha mastigando um horrível dente de alho.

Como se isso não bastasse, raramente trocava as meias. Nem escovava os dentes e nem esfregava o sovaco nos raros banhos de gato.

E a mulher? Ah... a mulher. Era de um asseio fora do comum. Metia-se em longas duchas, duas, três vezes ao dia, encharcava o cabelo no xampu, metia creme aromático na cútis e pomada íntima para eliminar os maus odores.

Depois deitava colônia no pescoço e atrás das orelhas e antitranspirante nas axilas bem raspadas.Era mesmo um primor de mulher.

E a cama? Como era zelosa com a cama! Dava gosto vê-la meter o lençol florido, as fronhas cheirando a lavanda.

E depois disso tudo... lá pelas tantas vinha o porcão - digo, o maridão - fungando e grunhindo, trôpego, para deitar-se ao lado da mulher amada - digo, perfumada.

Que contraste! Que cena tétrica, trágica e intragável!

E era com razão que a bela e esguia senhora sentenciava:

-Não quero! Não dou!

E virava-se para o lado contrário.

E o bêbado, sem energia para protestar (e mesmo para copular) arrancava-se dali para a sala, vociferando e espinafrando a velha arenga dos bêbados.

Era a glória!

Satisfeitíssima, a mulher saltava da cama, trancava a porta, abria a janela e recebia, cheia de volúpia e sofreguidão, o amante pronto-ágil-célere e cheio de desejo.

E o ronco do bêbado acolá confundia-se aos gemidos dos amantes cá - numa sinfonia cheia de um amor espúrio e sinistro.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O amor e a etiqueta (miniconto)

A mulher não pôde deter um arroto na mesa do restaurante. Ficou rubra. Baixou a cabeça.


O cavalheiro à sua frente - sua companhia - percebeu o pejo dela. E propositalmente sorveu num ruído o uísque, mastigou com a boca escancarada a comida, lambeu os beiços e palitou os dentes sem esconder o palito entre os dedos.


Tudo isso tentando empanar a vergonha dela ao sofrer a triste eructação.


Ela percebeu o cavalheirismo. E o amou. E ele também a amou, mais do que ela a ele, porque ela assim permitia que ele desse vazão aos seus instintos de homem.

O amor e a etiqueta (miniconto)

A mulher não pôde deter um arroto na mesa do restaurante. Ficou rubra. Baixou a cabeça.

O cavalheiro à sua frente - sua companhia - percebeu o pejo dela. E propositalmente sorveu num ruído o uísque, mastigou com a boca escancarada a comida, lambeu os beiços e palitou os dentes sem esconder o palito entre os dedos.

Tudo isso tentando empanar a vergonha dela ao sofrer a triste eructação.

Ela percebeu o cavalheirismo. E o amou. E ele também a amou, mais do que ela a ele, porque ela assim permitia que ele desse vazão aos seus instintos de homem.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O balconista da padaria

No balcão da padaria, o balconista sonhava acordado com a filha do dono.

Mas ele era pobre. Não era pro seu bico.

Amuado, covarde, patético e pálido que só ele - definhava a cada dia entre broas, pães e roscas.

Até que um dia viu a danada transando feito louca com o padeiro asqueroso no fundo da padaria.

O balconista definhou mais ainda, caiu doente e foi mandado embora do serviço.

Merecidamente!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

João Bobão

João Bobão era o seu nome.

João de batismo e Bobão de alcunha, não era à toa que o chamavam assim.

Sua vida era sorrir. Um sorriso constante, sem causa aparente, lá ia João Bobão pela vida, rindo feito bobo, e fazendo os outros rirem também de si.

Nada para João Bobão estava ruim. E viesse a inflação, e a peste, e a fome, e o partido da oposição a ganhar o pleito; e houvesse reajuste no gás, na luz, na água, no telefone; e tudo estivesse ruim, péssimo, lastimável - e João, o Bobão, lá estava com aquele riso bobo na cara, incólume e alheio a tudo.

João Bobão era o típico cidadão pacífico idolatrado pela política. Não tinha voz, não tinha boca, não tinha punhos. Tinha só aquele sorriso bobo. Esse era seu patrimônio. Sua marca. Seu eu.

Até que um dia sopraram-lhe uma piada mal contada.

Então tudo mudou.

João Bobão fechou a carranca. Carregou os sobrolhos. E partiu pra luta.

Odiado pelo mundo, pela política, trocaram a alcunha. Agora chamavam-no João Enfezadão.

E João Enfezadão passou a ser alguém na vida

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Diante de uma folha.

É o maior fantasma de todo escritor.

A folha estendida na mesa. Alva como cera. Desafiadora.

O escritor se debruça sobre ela. Morde o lápis. Bate o pé ritmado sob a escrivaninha.

-Ah, Deus, Deus, as palavras não vêm!...

E nem virão. Ele sente que têm bilhões de idéias geniais, mas elas se recusam a se transformar em palavras. E as palavras se recusam a tornar tangíveis tuas idéias.

Literato amigo, é melhor parar por aí. Não force a barra. Fica na tua, vai tomar uma cerveja, uma ducha fria, ou amassa a maldita folha e faz um pouquinho de malabarismo com ela sobre a mesa.

Se forçar, sai merda. Você vai ter vergonha de você mesmo, de ser chamado "escritor".

Você acredita em musas? Então a culpa é delas. Eu, como não acredito, digo: a culpa é tua!

Vida de escritor é isso aí, meu chapa! Hoje você ganha, amanhã você perde, e vamos tocando o barco... ou, no caso, as malditas folhas alvas.

Coloca na tua cabeça que é a obra que escolhe o autor, e não o autor que escolhe a obra. Parece absurdo. Parece surreal. Parece sobrenatural. MAS É ASSIM!

Então, se o fulano emplacou um conto escrevendo um rascunho em cinco minutos, sentado no vaso sanitário ou testando a caneta numa folha de enrolar presunto fatiado - sorte dele.

Enquanto você durante toda a vida projetou um calhamaço, arquitetou a trama, montou prólogo, epílogo, revisou trezentas vezes a forma, buscou no latim a etimologia apropriada para o nome de cada personagem - e morreu na praia.

Você não é incompetente. Você pode até ser uma sumidade. Mas se esqueceu do fator RISCO e do fator SORTE que, digam o que quiserem, são os norteadores do sucesso ou do fracasso.