sábado, 30 de julho de 2011

Eu e minha Shadow.

"É fim de tarde, a garoa cai fina
minha cabeça a mil, fujo de tudo.
Esqueço as letras, apago os números.
O coração acelara.

Não tenho destino certo,
Só quero ver o mar!

Tudo passa tão rápido
na visão embaçada da minha viseira
Apenas as luzes eu vejo. 
Eu e minha velha estradeira
Vamos sem pressa, como a cavalgar.

O vento gelado, num trajeto certo.
Então eu viro o braço e sumo na reta
Deixo o desgaste, já perto da serra.
Na cabeça o som do motor afinado
E num trecho isolado, diminuo a marcha
Vejo o reflexo da lua no mar!

Nem sombras de qualquer problema
Uma canção como tema ( silent lucility, pra variar!)
Diante do mar, só eu e minha shadow
Podemos perder no horizonte o olhar!

Na volta a estrada deserta, acaricío o tanque
Da minha venha companheira,
Em minha loucas fugas, ela parece planar!
Passamos velozes pelos obstáculos
E somos na paisagem uma única sombra
Na noite a vagar!"

Postado em 08/08/2010 por Cristhina Rangel.

domingo, 3 de julho de 2011

A mulher perversa

 

Como alquimista, banhei o bronze, maturei o oricalco, fundi os elementos e da ganga saiu um metal dourado, tão reluzente quanto o ouro.

 
MAS NÃO ERA OURO.

 
O ouro sempre vai ser ouro. É o metal nobre por excelência, e a natureza fá-lo assim desde sua concepção, seja enodoado pelo cascalho do leito, seja incrustado nas profundezas das minas. É nobre, e seu futuro é sempre as tiaras e as gargantilhas da nobreza.


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Perversidade é uma palavra temível. E tem pessoas que são assim desde o berço.

Aquela garota era genuinamente perversa.

Sua voz doce; seus olhos verdes, meigos; sua expressão angelical; suas ideias nobres acerca do mundo, da vida - tudo caiu por terra, mostrando o quanto a casca brilha sobre um interior medíocre.

A mulher perversa causa muitos estragos na humanidade. Vez ou outra surge uma que mostra a que veio. E o grande perigo é quando atuam na sombra, subrepticiamente, brincando com o sentimento de suas vítimas.

Sádica? Míope de empatia? A mulher perversa traz uma grande mácula em sua alma. É obscuro o teu destino, mulher perversa, e lamentável o teu presente. Porque tu és humanamente incapaz de amar a fundo quem quer que seja. E sempre vai ser assim. Teu coração é uma casca rija e seca. Tua alma é um deserto árido e deprimente.

Se um dia, por um desses mistérios da vida, teu coração pulsar forte por alguém, esperemos que a lei do karma não seja tão implacavelmente infligida contra ti.

Porque o silêncio, até mais que a altercação, é uma lâmina que fere a alma; ela trespassa o coração e queima como brasa. É o gesto mais terrivelmente desumano que alguém pode praticar.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Era só uma macumbinha.

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Ela mesma fez sua macumbinha.

Menina cerimoniosa, filha da Wicca e adepta dos florais de Bach, foi à casa de artigos religiosos, comprou alguidar, vela preta e fita vermelha, pimenta malagueta e farofa e cachaça e fumo.

Muito lépida e muito húmida, acocorou-se no meio do jardim no fundo da casa e meteu-se a compor o ebó.

-Ele vai ser meu! – vaticinou com uma voz firme e um olhar determinado.

A menina não passava dos dezessete aninhos. Mas amava (ou cria amar) aquele lorde, casado, quarentão, já um pouco calvo e com uma barriga levemente rotunda.

Mas, que importa. Ele amava a cerveja, ela amava a cannabis. Ele amava o golfe, ela amava as raves. Tinha tudo para dar certo, mesmo no papel da amante.

E o ebó ficou bem bonito, vistoso, colorido. E com muito cuidado ela engavetou o despacho sob um pinheiro retorcido, na parte mais fechada do jardim.

Ofereceu ao gnomo da floresta... digo, do jardim, e lá se foi alegre esperando o resultado do seu trabalho.

As entidades da Umbanda não gostaram nem um pouco do aspecto eclético da coisa. A menina devia ter sido mais específica. Não rolou nem um charuto, nem uma insubstituível galinha preta. E ainda pra um duende... digo, um gnomo!

O deva do jardim foi ter com o Capa Preta. Confabularam por um bom tempo. E do alto daquele conciliábulo, saiu o veredicto, em meio às gargalhadas do terrível exu:
-Castiguemo-la! Vou lançar o pançudo careca na vida da menina. E serão infelizes para sempre!

O feitiço pegou! E foi mais trabalho para o pessoal do Setor Cármico. Mais uma vez a experiência, no físico como no astral, mostrou que a inépcia engendra a ofensa, e esta o fisiologismo que entrava os assuntos celestiais... ou infernais.

domingo, 17 de abril de 2011

33º grau.


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Finalmente ele atingiu o 33º grau da Ordem.

Agora compreendeu tudo! Em amplitude, dimensão e profundidade. De forma intensa, plena e completa.

Uma vertigem fê-lo sentar-se no trono de Grão-Mestre. Sentia-se grande, muito grande - e ao mesmo tempo minúsculo, muito minúsculo na imensidão do Todo.

Compreeendeu que trilhou toda a vida pela senda de Melquisedec, e só agora entendia que realmente não havia secerdotes.

Suspirou fundo. Numa última reflexão, compreendeu o verdadeiro sentido da Trindade, longe das alegorias e dos acessórios.


Uma voz íntima soprou-lhe no Espírito:

"Sai da Loja como um indigente espiritual. Vai, serve, essa é a essência de tudo".

Foi o maior Grão-Mestre do seu tempo. Depois dele, até os dias de hoje, Baphomet continua a desafiar o orgulho tolo dos pedreiros novos e incautos.


Que sois vós, a meter o compasso e o esquadro especulativos em pilares de ostentação? Como disseram os iniciados de Sais a Sólon, "Sois meninos". Mal sabeis o profundo significado do triângulo equilátero. E se metem ainda a rubricar os três pontos, cheios de um orgulho inútil, esquecendo-se do espírito servil e reservado dos rosacrucianos, vossos insuperáveis precursores.

terça-feira, 8 de março de 2011

A freira e o pecado.


Cena do filme "O Pecado de Hadewijch"

Como aquilatar a magnitude de um Espírito, se este não sabe discernir o Bem de modo tão pleno quanto aquele que também trilhou o caminho das Trevas?

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A monja cresceu no convento. Os únicos gozos até então conhecidos, antes mesmo do noviciado, eram de natureza puramente sacrossanta. Encerrada em sua cela, ficou três longos anos remoendo essa inquietante questão:

"Qual a natureza do pecado?"

Até que não mais se conteve. Com vinte e três aninhos de idade, saiu finalmente do seu cubículo e foi ter com a madre superiora. Queria discernir a sua vocação em meio ao chamamento do mundo.

Não obstante já ter feito a menina os votos, a madre não teve outra escolha senão dispensá-la. E acreditou, consternada, que acabava de perder mais uma serviçal para o irresistível poder do século.

A manceba despojou-se do hábito e, muito faceira, meteu-se num vestidinho florido, decote generoso e tamanquinho. Perfumada como uma flor exótica dos trópicos, ela transpôs os pesados portões do mosteiro e ganhou as ruas sedutoras do mundo.

É preciso esclarecer, sem pudores nem reservas, que a nossa heroína não teve igualmente nem pudores nem reservas ao fazer o seu mergulho nos prazeres da carne.

Caiu de corpo e alma (mais de corpo que de alma) no império da luxúria. Dançou, bebeu, abraçou, beijou, fornicou, adulterou. E fê-lo muito. E intensamente. E experimentou os espasmos mais intensos do orgasmo, sentindo o corpo alquebrado após longas sessões de bacanais. E sentiu o ranço das longas ressacas, o delírio efêmero dos entorpecentes, e cheirou e ingeriu e injetou e tragou.

Viveu, enfim, mais três longos anos toda a promiscuidade que sua idade e beleza puderam lhe permitir, quando finalmente foi bater no mosteiro, carregada de olheiras, enodoada pelas secreções de uma vida dissoluta, corrompida pelo lesbianismo e pela sodomia.

A madre recebeu-a um tanto apreensiva. A menina devassa pediu novamente o hinário, o hábito, o rosário e a cela.

Recuada no seu nicho, nossa heroína não chorou. Não rogou perdão. Somente agradeceu ao Pai na mais intensa e contrita jaculatória. E sussurrou a Ele, estremecendo de sublimado prazer, que nada, NADA EM TODO O COSMO se igualava ao gozo Íntimo, Inexcedível, Indizível, Indescritível e Inefável de uma alma galardoada pelo Seu Criador.

E viveu e morreu santamente. Mais santamente que qualquer outra monja sua contemporânea.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O demônio-rei e o carnaval.

"Dai ao demônio o que é do demônio, e a Deus o que é de Deus".

"Longe de querermos conceber uma visão maniqueísta do mundo, é preciso entender contudo que a dualidade preside a tudo. É ela que faz o Universo subsistir. Porque o Universo de fato não sofre evolução, mas estágios cíclicos. Nesse contexto, o Bem e o Mal são meros instrumentos da dinâmica do Criador"

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Nunca foi dado crer em rituais. Era cético. Sambista nato. Um fanático pelo Carnaval.

 Colecionava cuícas, pandeiros e adereços. Dominava com maestria os assuntos carnavalescos. Sua vida eram alegorias, sambódromos, harmonia, enredo e o diabo-a-quatro.

Estamos em pleno festejo pagão. O nosso sambista estava no galpão acertando os últimos detalhes. Sentiu repentinamente alguma tonteira, ânsia de vômito, um mal-estar indescritível. Pensou mesmo ter visto vultos serpenteando entre as plumas e as carrancas das armações imóveis e silenciosas dos gigantescos carros alegóricos.

Foi ter com seu pai-de-santo. O babalorixá foi direto ao ponto:

-Os demônios presidem ao Carnaval. Uma legião deles se encostou em você.

O carnavalesco riu-se gostosamente daquela tolice. O médium retrucou:

-Duvida? Então faz assim: à meia-noite da segunda, bem no limiar da entrada dum salão de baile de Carnaval, reza o Credo Niceno de trás pra frente, tal qual foi redigido no Concílio, depois meta os olhos no meio dos foliões e veja você mesmo.

O consulente saiu do terreiro entre gargalhadas. As vertigens e a visão dos vultos, porém, continuaram a incomodá-lo. Então passou a cismar sobre aquele bizarro ritual prescrito pelo pai-de-santo.

Mesmo se sentindo um idiota, decidiu testar o rito. E exatamente à meia-noite do dia indicado estava bem à entrada dum salão fervilhante de foliões. Tomou um papel e meteu-se a recitar o Símbolo invertido:
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-Amen saeculi venturi vitam et mortuorum...

Lançou os olhos sobre a multidão de foliões. Ficou petrificado!

Ali, entre a turba suarenta, muito sôfrego e muito horripilante, viu, claramente visto (parafraseando Camões), a figura nítida, robusta, inquieta do demônio, saltando, fazendo gestos obscenos, chicoteando e estalando no ar o rabo peludo e soltando chispas no chão com os cascos.

Por sete longos minutos o sambista viu, arrepiado até à nuca e suando frio, o diabo soprando ideias lascivas entre os casais, sugestões criminosas entre homens com tatuagens de demônios pagãos ou monstros mitológicos e incitando desejo por drogas entre os mais susceptíveis.

Algumas vezes, satisfeitíssimo, o capeta guinchava, um guincho satânico, agudo, tonitruante, abrindo a bocarra repleta de caninos, esfumando no ar uma névoa nauseante, carregada de enxofre, e batendo com as mãos crispadas no peito, os olhos esbugalhados e as ventas dilatadas.

Que figura dantesca!... Ali era rei.

O carnavalesco saiu atordoado daquele antro. Lá fora não pôde conter uma golfada de vômito que jorrou involuntária no chão abrasado das cercanias do salão.

Desde os tempos de Baal, de Astaroth, de Moloch ou quaisquer dos demônios sanguinários dos maias, dos babilônios ou da recuada era de Mani e Zaratustra - o mundo pertence ao maligno.

São os algozes daqueles que recalcitram desde o Expurgo, e que seguramente continuarão recalcitrando mesmo após o mergulho no Cinturão de Alcíone.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A arte e o vômito.

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O cara tava carregado de inspiração.

O braço, petrificado como uma rocha, dava um bruto contraste com a mão e os dedos que tremulavam sobre a mesa. Nunca vi coisa parecida.

Dera-lhe um toco de lápis. Ele meteu-se a garatujar a folha, louco, muito louco, apertando a ponta no papel ao ponto de rasgá-lo.

E quebrava a ponta dum lápis, e lhe davam outro. E às vezes, no transe, vinha a amassar as folhas, esmurrando a mesa e lançando a grafite longe, violentamente.

O transe durou três longos minutos. E desse pandemônio mediúnico saiu um belíssimo soneto, parnasiano, tão ininteligível quanto as mais belas redondilhas dos mais ensandecidos bardos.

-É Bilac! - proclamavam uns, cheios de espanto.

-Não! É arte de Píndaro! - retalhavam outros.

-Ora, Píndaro já voltou à carne. Meteu-se nos obscuros corredores da Psiquiatria. Se não é Bilac, é Manoel da Nóbrega.

-Arre! Padre Manoel não tem apreço aos preciosismos. Ele tem lucidez de senador romano...

Nesse ínterim, o médium lançou uma gargalhada, estremecendo as paredes alvas do edifício. E subscreveu a mensagem que encetara a polêmica:

"João José, obscuro, ignoto, indigente sepultado em vala comum, poeta de papéis de pão, com incursão à Terra precedente de Bilac, Publius Lentulus ou qualquer poeta tebano. Impublicável por sua própria deliberação".

E, finalizando, rasgou em milhões de pedacinhos o raríssimo soneto, ao que recitou muito sardônico:

-A Arte é tão efêmera quanto a Vida.

E aquela imita esta, e a precede,

E a vomita.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

João Meladão, um ladrão de calcinhas

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João Meladão finalmente foi pego com a boca na botija, ou melhor, com as mãos na calcinha.

Dona Gertrudes já estava cismada há algum tempo, e resolveu montar tocaia. Estava farta de ter que comprar calcinhas para repor as que vinham sumindo misteriosamente do varal.

O tarado acabava de puxar uma das peças quando ouviu ela berrar com toda a estridência de uma dona ultrajada:

-Ladrão de calcinha! Pega!

João Meladão pulou a cerca igual a um gato assustado e mergulhou no matagal fundo que se estendia do outro lado da rua, levando consigo a preciosa calcinha.

Aboletada na cadeira, deram-lhe água com açúcar. Ela tremia de medo e ódio:

-Uma calcinha cara, rendada, vermelha! A preferida do Jucão. – lamentava a robusta mulher em meio às trouxas de roupa suja ainda por lavar.

Jucão, o maridão, ficou sabendo de toda a presepada. Não pensou duas vezes ao sair no rastro do covarde.

-Roubar calcinha de mulher alheia! Eu mato esse desgraçado!

João Meladão era um sujeito bem conhecido do vilarejo. Beirando os trinta, espigadão, lento das idéias e olhar aluado, era o que parecia de mais inofensivo naquele fim de mundo.

-Ele pode ser tantã – grunhiu o marido – mas sabe bem o que faz. Eu acerto o passo desse maldito.

Saiu armado com cano e com faca. Sabia onde encontrar o infeliz.

-Eu preciso devolver a calcinha da dona Gertrudes!

A voz vinha de dentro do casebre, no final da rua da igreja matriz. Era a casa do João Meladão.

Jucão deslizou pela parede feito um jagunço. Parou numa fenda da janela. Dali pôde ver todo o cenário dentro do pardieiro.

João Meladão estava sentado numa banqueta, cabeça baixa, arcado sobre sua própria desolação. À sua frente, sentado noutra banqueta, o padre admoestava severamente o ladrão de calcinhas:

-Você já pensou o vai acontecer, agora que você foi flagrado pela dona Gertrudes?

O tarado começou a chorar feito criança:

-Eu não queria fazer isso, padre. É mais forte do que eu.

E começou a desfiar toda a miséria que ia na sua alma:

-Não consigo limpar da mente minha infância, meu pai violentando minha mãe e minha irmã na minha frente. O sexo pra mim se tornou uma coisa imunda.

-Depois, quando eu completei quinze anos, ele me levou no prostíbulo e me obrigou a transar com as prostitutas. Mas não consegui nada.

-Elas zombaram de mim, esfregaram as calcinhas na minha cara, me chamaram de frouxo.  Nunca consegui transar com mulher nenhuma. Hoje até sinto algum desejo, mas não tenho ereção.

João Meladão sofria, na verdade, de disfunção erétil e ejaculação precoce. Aquele fetiche parecia compensar, num desvio sexual, as suas restrições funcionais e afetivas.

Ele então estendeu a calcinha ao pároco:

-Eu te peço, padre: devolve a calcinha a dona Gertrudes. Diga que estou arrependido.

O padre tomou a calcinha, constrangido. João Meladão foi até um baú e de lá retirou mais um punhado delas.

-Estas também são dela.

Mas não teve tempo de entregá-las também ao padre. Num átimo, um vulto pulou quarto adentro e riscou com a faca a jugular do tarado.

O padre deu um grito de pavor. A vítima caiu, tentando estancar com as mãos as artérias donde jorravam dois jatos medonhos de sangue.

João Meladão morreu ali mesmo, caído entre as calcinhas embebidas em sangue.

Limpando a lâmina na camisa do cadáver, Jucão ainda rugiu do alto do seu brio de marido ultrajado:

-Infeliz! Pode ficar agora com as calcinhas. Faça bom proveito.

E, recolhendo a faca na cinta, saiu pisando duro. Vingado. Honrado.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O abutre pousou no telhado da casa.


O abutre pousou no telhado da casa.

Que abutre horroroso! Negro como uma gralha, vergado, deu três saltos agourentos na cumeeira e esvoaçou até aos pilares da varanda em frente à choça.

A porta se abriu num rangido gemebundo. Nheeeeecccccc! E o abutre, tal quais os nossos carcarás saltitantes, mergulhou no interior da casa cheio de curiosidade.

Ali era só desolação. Poeira, calhamaços velhos espalhados pelas estantes e um silêncio úmido que dariam arrepios no mais intrépido aventureiro.

O bicho vasculhou todos os cantos da casa. Estranho! Ali não havia carniça. Ainda assim empoleirou-se numa das quinas duma estante e ficou grasnando, inquieto, a perpassar seus olhos de rapina por todo o caos.

Morreu ali, só, vomitando langanho como um sentinela naquela biblioteca-fantasma.

Nunca vai se compreender os abutres, o porquê eles cultuarem a morte e tudo o que a representa.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Um certo caso de PENSAMENTO NEGATIVO.

Foi minha primeira namorada.

Bem, ela não sabia disso. Mas era minha namorada.

Eu tinha dezesseis anos. Ela quinze. Eu já tinha experimentado outras paqueras (hoje é o ficante) antes. Mas tudo ficou sem graça e sem sabor quando eu conheci ela - por isso digo que foi minha primeira namorada.

Ela era comprometida, e há muito tempo. Namorava sério um carinha que cresceu morando na mesma rua que ela, amigos de infância, depois namorados, depois planos de se casar e montar casa e ter filhos e envelhecer juntos.

Eu amava ela. Mais que tudo. Ela era meu chão, meu céu e meu EU. E ela não sabia disso.

Sofri calado durante todo o ano escolar. Era timidíssimo. Um poço de timidez. E ela deixava esvoaçar o cabelo, fazia pose, ria-se e brincava e vivia de forma sadia - totalmente alheia ao meu sofrimento.

Um dia me declarei. Não a ela, mas à sua amiga, com a qual eu contava com certa proximidade. A amiga contou à pretendida (pretendida? Era algo morbidamente platônico).

A beldade mandou recado de volta: "Eu nunca poderia imaginar... Ele é tão quietinho". Foi tudo que eu podia esperar dela. Nada mudou. Eu mereci esse purgatório de quase doze longos meses.

No final do ano letivo, ela se debatia em meio a algumas notas baixas. Corria risco de reprovar. E caiu na matéria para fazer a última e decisiva prova.

A menina abateu-se a olhos vistos. E murmurava, quase numa prece, quase num mantra, meneando a cabeça:

-EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!

Por um mecanismo de estranha empatia caí ao seu lado, condoído. E a cada mentalização dela, mais eu a amava.

EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!

O ano se foi. Ela reprovou. Eu deixei de amá-la com mesma intensidade e rapidez com que a amei. E hoje, ao me lembrar dela, só me recordo da sua frase que ela repetia tão firmemente:

EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!

sábado, 17 de abril de 2010

O paradoxo do amor e do ódio.

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No último espasmo do gozo, ela gritou, os olhos injetados de sangue:

-Eu te odeio!

Sim, ela odiava aquele traste - na proporção inversa da sua atração por ele.

Germano sempre foi um formidável cafajeste. Muito narciso, já entrava nos trinta, solteirão, metido a fisioculturista, incapaz de levar adiante qualquer relacionamento por mais de uma ou duas semanas.

Achava-se o máximo, e o mulherio tinha uma boa parcela de culpa nisso, suspirando pelo danado mesmo conhecendo claramente a natureza promíscua do dito cujo.

Liliana, tal qual uma Cherazade dos contos árabes, achou logo um meio de entreter por mil e uma noites aquele garanhão indomável.

A primeira transa foi transcendental. Amou-o com tal intensidade e maestria, que conseguiu manter o safado no seu jugo feminino por longas três semanas.

-Ei-lo! Agora é meu! – ela comemorou no seu íntimo. E concluiu que a arte tântrica e a Kamasutra não formavam casais solidamente monogâmicos à toa no longíquo Oriente.

Mas... um cafajeste é sempre um cafajeste. E Germano já se entrelaçava com outras ao final esse período. E ela, muito danada dessa vida, descobriu a trapaça - mas ainda assim não conseguiu deter a marcha da sua paixão desenfreada.

Estava totalmente à mercê do imprestável. E então, sob o corpo dele, ela declarou que o odiava, enquanto sentia o sêmen se alojar, bravio e selvagem, nos mais profundos escaninhos das suas entranhas.

E odiando ele, ela foi estranhamente feliz por três longos anos, sentindo-se na vil qualidade de amante, quebra-galho, namorada a tiracolo...

Findo esse período, Germano chegou até ela, mais domado, menos cúpido, e desatou a falar sobre família, filhos, uma casa, vida pacata, envelhecer juntos, dividir frieiras e reumatismos...

O cafajeste caía, e com ele morria mais um garanhão, num mundo onde só os garanhões são verdadeiramente amados.

Liliana afastou-se aos poucos. O encanto definhou até se tornar uma indiferença visível. Os orgasmos dela já não eram tão intensos; e os seus olhos já não se injetavam de sangue ao senti-lo ejacular dentro dela.

E assim, numa noite lânguida de falso amor, ela murmurou, fitando-o distante:

-Eu te amo.

E, amando-o, afastou-se para sempre.

E os deuses desceram à Terra.

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"Já fui macaco em domingos glaciais, Atlantas colossais, que eu não soube como utilizar."
(Raul Seixas)

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Na longa intevenção dos Anunnakis sobre a Terra, a fertilização das filhas dos homens não foi uma tarefa fácil.

Ainda que os registros sagrados revelem que foram tomados os mais belos exemplares, não havia fêmeas tão exuberantes entre os homo-erectus.

As mulheres pré-Anunnakis carregavam ainda a compleição das viragos: robustas, púbis mui hirsuta, crânio proeminente, fronte curta e cabeleira nem muito longa, ondulada ou sedosa. Traziam feições simiescas, revelavam inteligência curta e uma anuência assombrosa aos rituais do coito.

Somente após muitas e muitas gerações é que as fêmeas híbridas - já descendentes dos deuses e dos homens - começavam a lembrar os primeiros tipos hiperbóreos: pele alva, ombros estreitos e retilíneos, traços faciais suaves, olhos claros e uma grande capacidade de raciocínio e assimilação, apanágio dos tipos de Nibiru dos quais em parte descendemos.

Portanto, a intervenção dos Nefilins - ou os Filhos de Deus - não foi somente uma operação de alienígenas lascivos. Foi primordialmente uma guinada crucial para o futuro do globo pós-diluviano.

A depuração das raças pode estar na iminência de sofrer uma nova intevenção dirigida no processo da seleção natural e da aleatoriedade das mutações genéticas - que lado-a-lado fazem dos globos uma oficina gigantesca da evolução.

Os geneticistas do Espaço trabalham diligentemente nesse sentido. Contra a degeneração racial simbolizada por Sodoma e Gomorra e experimentada pelas desastrosas invasões bárbaras, pelo Colonialismo e suas consequentes miscigenações.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Por detrás da lenda...

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A princesinha acordou assustada.

Diante de si, sete diabretes formavam um círculo ao redor da pequena cama. Seu coração disparou.

Num instante, lembrou-se das histórias dos camponeses sobre a familiaridade dos elementais nas suas choupanas e charnecas, quase comparados aos penates da Antiga Roma.

Branca de Neve não era tão tola como nos faz sugerir os irmãos Grimm. Havia crescido às voltas com as feitiçarias de sua madrasta, muitas vezes concorrendo com ela nas conjuras aos espíritos do astral.

Ela sabia, enfim, o que acontecia ali.

Os elementais da terra são energias brutas, tão rudes quanto a própria natureza telúrica da crosta. E logo a moça sacou que diante de si tinha sete (número cabalístico) falsos gnomos (ou formas-pensamentos) materializados no meio da mata pela madrasta para monitorar os passos da jovem e maldita herdeira na sua fuga.

Ali - e isso os irmãos Grimm e nem Disney contam - ocorreu uma acirrada batalha de magia. De um lado, a madrasta, evocando toda uma horda de baixíssima vibração para animar seus trasgos, e do outro, a menina iniciada, revertendo essa energia com eflúvios de simpatia para influenciar positivamente os falsos gnomos no seu convívio.

Branca de Neve ganhava essa batalha travada à distância. Os anões tornaram-se seus serviçais, e a madrasta, muito astuta, cismou que tinha que resolver a parada pessoalmente.

Mas ninguém imaginava - isso mesmo, nem Branca de Neve, nem a madrasta, NEM OS IRMAÕS GRIMM E NEM DISNEY - que um dos anões, o Mestre, havia dissipado uma das formas-pensamentos e tomado seu lugar, e era o único e verdadeiro gnomo já dotado de um certo grau de livre-arbítrio.

Após o envenenamento pela maçã, ele alterou o campo vibracional das seis formas-pensamentos, e com elas perseguiu a bruxa, ávido por justiça.

Aqui as versões se multiplicam. Mas a mais conhecida - e adotada por Disney - dá a conhecer que a bruxa é exterminada na perseguição empreendida pelos anões.

O mais notável é que Branca de Neve nunca foi envenenada de fato. Nos meandros da Alta Magia, há infinitos recursos que só os Magos Brancos e Negros conhecem bem. O Mestre (gnomo) soube amenizar o efeito letal do feitiço na maçã, conjurando paralelamente a horda evocada e comutando o feitiço para um sono cataléptico de longa duração.

Portanto, o beijo do príncipe foi uma versão romanceada para a solução da lenda e o seu desfecho. Não que ele não tenha beijado a moça. Mas ela teria que despertar de qualquer forma.

P.s. Mas, afinal, de onde teria surgido o Mestre, esse único anão que não estava à mercê das manobra mágicas da madrasta e sua enteada?... Isso é ooooooutra história...

sábado, 16 de janeiro de 2010

O valentão no bar

...

O valentão entrou no bar e esmurrou o balcão com toda a força:

-Aqui não tem homem!

O dono da bodega, baixinho e careca, sumiu-se pela portinhola dos fundos. Uns bêbados sentados a um canto pararam de jogar cartas e murcharam as orelhas.

O boteco silenciou.

Um homenzinho de meia-idade, nanico, esquálido, vergado, levantou-se de uma das cadeiras e tocou com o dedo as costas do brutamontes:

-O que foi que você disse?

O machão voltou-se. Olhou o homenzinho de alto a baixo. Tornou a esmurrar o balcão, agora com mais força. E berrou irritadiço:

-EU DISSE QUE AQUI NÃO TEM HOMEM!!!

-É... de fato... - riu-se timidamente o nanico sob a sombra do grandalhão. Mas, não te serviria um prato com picles, uma cerveja bem gelada ou uma porção de azeitonas?

Dos templos da Atlântida

...

Mírian precisava descansar. Sua incursão pelas terras da Judéia fora sofrida, e agora sua primeira missão estava cumprida.

Pousando a belíssima fronte na cadeira de vime, ressonou envolvida pela esplêndida paisagem daquela quinta celestial.

Mírian sonhou. Como num écran, reviveu os momentos da sua iniciação nos templos da Atlântida, cheios da tênue luz azul das eras divinas do oricalco.

Alí, ainda menina, conheceu aqueles que seriam os Magos do Oriente, José (seu futuro esposo), Elias (ou João Batista), Isabel, Lázaro e Judas Iscariotes.

Ah... a Atlântida - suspirou Mírian, refazendo-se daquilo que futuramente os fanáticos chamariam de "Assunção". A Atlântida fora a escola iniciática do advento do Avathar. Como uma vestal romana, Mírian fora virgem e aprendera ali os mistérios insondáveis do Amor Cósmico.

E como toda centelha elevadíssima, esperou humildemente naquela colônia paradisíaca as novas ordens do Altíssimo. Em Fátima, Medjugorje, Guadalupe, Lourdes - a carruagem celestial levaria a eterna missionária, filha da Atlântida, filha de Davi, o vaso sagrado de Sião na mesa carolíngia, para o concurso da consolidação da Nova Era.

Galinha preta

...

Meia-noite.

Somente a orquestra monótona dos grilos cortava o silêncio escuro da encruzilhada.

Era uma galinha, e preta. Metida no alguidar com a farofa, a aguardente, os círios vermelhos, o charuto e o dendê - ela atraiu um incauto egum.

A entidade veio cambeteando, debruçou-se sobre o despacho. Os olhos injetados de sangue. Os caninos à mostra, proeminentes, ávidos pela oferenda: a galinha preta.

Mas não conseguiu sugar os eflúvios do ebó. Um guerreiro das sombras surgiu, estalou o chicote no ar e bradou, enérgico, mandando o intruso se afastar.

-Tranca-Rua! - o quiumba deu um salto, apavorado. Tentou correr, escorregou na cera da vela rubra e, manquitolando em desespero, acabou cercado por uma falange de demônios.

-Fazendo arruaça nas quebradas! - gargalhou o Exu aproximando-se da alma penada.

-Piedade! - o quiumba suplicou.

O guardião não teve piedade. Brandindo a vergasta, desferiu três chicotadas no egum. Uma ardeu-lhe no maxilar, outra rasgou seu tórax, e outra, enlaçando como uma serpente de fogo seu flanco, fê-lo rodopiar a dois metros de altura, atirando-o a considerável distância.

Transido de dor, safou-se manquitolando e berrando como louco, sumindo-se pelas brumas do astral inferior.

O mendigo - o encosto na porta

...

Ele parou à porta da casa. Estava roto. Fedia muito, a sujidade impregnada sob as unhas, nas dobras dos sovacos e das virilhas.

Bateu o bordão na porta em três pancadinhas. Depois sentou-se na varanda, vencido pelo cansaço.

Dentro da casa escura, o silêncio era total. Mas a mulher ouviu o barulho. Apreensiva, chamou o novo marido:

-Amor, você ouviu?

O novo marido virou-se para o outro lado, sonolento. A mulher ficou com os olhos esbugalhados na escuridão.

O mendigo pegou um pedrisco e atirou no telhado, como se aquilo pudesse ajudá-lo a varar as infinitas horas nas quais se resumiam suas vadiagens pelas noites ermas.

A mulher sentou-se na cama, agora certa de que ouvira algo.

-Pablo, levanta! Tem alguém no quintal! Eu ouvi.

Com custo o novo marido se levantou, resmungando. Ela deveria estar enganada.

-Tenho certeza que ouvi um pedregulho rolar pelo telhado. E antes já tinha ouvido passos no quintal.

Cautelosamente o marido acendeu a luz de fora e vasculhou com os olhos toda a extensão do quintal. Depois voltou vencido para o quarto.

-Não há nada lá fora, mulher. Agora dorme.

O mendigo ainda estava lá. Visível. Encolhido na porta sob a varanda.

Saiu então chutando pedrinhas, ganhou as ruas silenciosas. Não sabia mais para onde vagar. A casa era sua, a mulher era sua, a noite era sua. Mas a vida não era mais sua. E estava ainda muito fraco para lutar pela sua alma.

Não consigo escrever

...

Na sala de aula, o menino tremia todo metido atrás da carteira.

A folha na mesa, lápis, borracha, e a carranca da professora fuzilando suas trinta e poucos vítimas prontas para o holocausto.

Prova de redação! Dia tenebroso!

-Vinte linhas, introdução, desenvolvimento, conclusão, não esquecer título, atentem para a coesão, a ortografia, a concordância, a ACENTUAÇÃO GRÁFICA...

A cada palavra, a cada gesto, a molecada ficava mais retesada na cadeira, olhos arregalados - o terror espalhara-se e estabelecera um silêncio medonho, catacúmbico.

-E nem um pio! - finalizou a professora implacável, deliciada ao ver o massacre do qual somente sairiam dois ou três sobreviventes mais afeitos aos rudimentos da gramática...

Machado de Assis (sim, o garoto chamava-se assim) não suportou o baque. Heroico, tentou com toda a energia do seu espírito empreender a façanha de retirar do seu cérebro uma redaçãozinha que fosse.

Mas nada! Mordeu o lápis, espremeu o cérebro, e não conseguiu traçar uma palavra sequer. Desesperado, desabou num berreiro, colocando toda a sala em alvoroço.

O inspetor veio, levou o garoto, deu-lhe água com açúcar e chamou o socorro.

Na carteira, o papel - tão alvo e limpo como antes - o lápis e a borracha ao lado.

Machado de Assis só conseguiu enxergar uma utilidade na escrita quando, mais tarde, conheceu a menina dos seus sonhos e precisou mandar um bilhetinho de amor para ela.

E assim o fez. E com maestria.

O grande duende (miniconto)

...

O grande duende era mesmo um fanfarrão.

Saiu das matas e foi diretamente habitar uma assobradada mansão de um Mestre Maçom.

Nunca consegui manter-me sério ao lado dele. Era hábil em apanhar os ridículos alheios e transformá-los em alcunhas e anedotas de fazer rir o mais grave dos homens.

Até que um dia, escondido entre os víveres despachados numa anônima campanha de fraternidade da loja, o grande duende acabou saltando na casa misérrima de um braçal da periferia.

A penúria ali era gritante, trágica, medonha.

A partir desse dia o duende fanfarrão nunca mais recuperou seu bom humor. Vivia amuado.

Era o fim do elemental. Era hora de se humanizar.

O amor e a bebida

"O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso".
(Madre Teresa de Calcutá)

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Ela estava sob forte efeito do álcool.

Tenteante, apoiou-se na parede, levou à mão ao busto e, sem poder conter o fluxo, regurgitou todo o banquete da noite.

-Estou mal! - ela declarou, pálida.

Fez uma cara de repugna: a boca estava amaríssima, na ponta da língua sentia o azedume do suco gástrico.

O namorado abraçou-a, compadecido:

-Eu te alertei, amor! Você sabe que não deve.

O amor dele superava o fantasma do alcoolismo que acompanhava a garota desde os primeiros anos da adolescência.

-Eu vou parar! - ela disse numa convulsão de choro. Eu preciso parar!

Na calçada, sob a claridade das luzes dos postes, ele abraçou fortemente sua trôpega amada.

Beijaram-se. Longamente. Intensamente. Uma amálgama acérrima de saliva, vodka, resíduos de aspargo, vitela e creme de chantilly revolucionava entre as bocas febris.

Era um amor puro, verdadeiro.

Uma embolia repentina fê-la rechaçar o amante bruscamente. Ela não pôde conter-se. Um jacto de vômito atingiu a face dele, respingando pontículos do parmesão, do palmito e do champignon no seu terno alvo.

Como um eterno amado, ele aguardou pacientemente que a garota se recompusesse, para trazê-la novamente a si e dar-lhe novo beijo e umas cápsulas de antiácido.