sábado, 16 de janeiro de 2010

O valentão no bar

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O valentão entrou no bar e esmurrou o balcão com toda a força:

-Aqui não tem homem!

O dono da bodega, baixinho e careca, sumiu-se pela portinhola dos fundos. Uns bêbados sentados a um canto pararam de jogar cartas e murcharam as orelhas.

O boteco silenciou.

Um homenzinho de meia-idade, nanico, esquálido, vergado, levantou-se de uma das cadeiras e tocou com o dedo as costas do brutamontes:

-O que foi que você disse?

O machão voltou-se. Olhou o homenzinho de alto a baixo. Tornou a esmurrar o balcão, agora com mais força. E berrou irritadiço:

-EU DISSE QUE AQUI NÃO TEM HOMEM!!!

-É... de fato... - riu-se timidamente o nanico sob a sombra do grandalhão. Mas, não te serviria um prato com picles, uma cerveja bem gelada ou uma porção de azeitonas?

Dos templos da Atlântida

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Mírian precisava descansar. Sua incursão pelas terras da Judéia fora sofrida, e agora sua primeira missão estava cumprida.

Pousando a belíssima fronte na cadeira de vime, ressonou envolvida pela esplêndida paisagem daquela quinta celestial.

Mírian sonhou. Como num écran, reviveu os momentos da sua iniciação nos templos da Atlântida, cheios da tênue luz azul das eras divinas do oricalco.

Alí, ainda menina, conheceu aqueles que seriam os Magos do Oriente, José (seu futuro esposo), Elias (ou João Batista), Isabel, Lázaro e Judas Iscariotes.

Ah... a Atlântida - suspirou Mírian, refazendo-se daquilo que futuramente os fanáticos chamariam de "Assunção". A Atlântida fora a escola iniciática do advento do Avathar. Como uma vestal romana, Mírian fora virgem e aprendera ali os mistérios insondáveis do Amor Cósmico.

E como toda centelha elevadíssima, esperou humildemente naquela colônia paradisíaca as novas ordens do Altíssimo. Em Fátima, Medjugorje, Guadalupe, Lourdes - a carruagem celestial levaria a eterna missionária, filha da Atlântida, filha de Davi, o vaso sagrado de Sião na mesa carolíngia, para o concurso da consolidação da Nova Era.

Galinha preta

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Meia-noite.

Somente a orquestra monótona dos grilos cortava o silêncio escuro da encruzilhada.

Era uma galinha, e preta. Metida no alguidar com a farofa, a aguardente, os círios vermelhos, o charuto e o dendê - ela atraiu um incauto egum.

A entidade veio cambeteando, debruçou-se sobre o despacho. Os olhos injetados de sangue. Os caninos à mostra, proeminentes, ávidos pela oferenda: a galinha preta.

Mas não conseguiu sugar os eflúvios do ebó. Um guerreiro das sombras surgiu, estalou o chicote no ar e bradou, enérgico, mandando o intruso se afastar.

-Tranca-Rua! - o quiumba deu um salto, apavorado. Tentou correr, escorregou na cera da vela rubra e, manquitolando em desespero, acabou cercado por uma falange de demônios.

-Fazendo arruaça nas quebradas! - gargalhou o Exu aproximando-se da alma penada.

-Piedade! - o quiumba suplicou.

O guardião não teve piedade. Brandindo a vergasta, desferiu três chicotadas no egum. Uma ardeu-lhe no maxilar, outra rasgou seu tórax, e outra, enlaçando como uma serpente de fogo seu flanco, fê-lo rodopiar a dois metros de altura, atirando-o a considerável distância.

Transido de dor, safou-se manquitolando e berrando como louco, sumindo-se pelas brumas do astral inferior.

O mendigo - o encosto na porta

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Ele parou à porta da casa. Estava roto. Fedia muito, a sujidade impregnada sob as unhas, nas dobras dos sovacos e das virilhas.

Bateu o bordão na porta em três pancadinhas. Depois sentou-se na varanda, vencido pelo cansaço.

Dentro da casa escura, o silêncio era total. Mas a mulher ouviu o barulho. Apreensiva, chamou o novo marido:

-Amor, você ouviu?

O novo marido virou-se para o outro lado, sonolento. A mulher ficou com os olhos esbugalhados na escuridão.

O mendigo pegou um pedrisco e atirou no telhado, como se aquilo pudesse ajudá-lo a varar as infinitas horas nas quais se resumiam suas vadiagens pelas noites ermas.

A mulher sentou-se na cama, agora certa de que ouvira algo.

-Pablo, levanta! Tem alguém no quintal! Eu ouvi.

Com custo o novo marido se levantou, resmungando. Ela deveria estar enganada.

-Tenho certeza que ouvi um pedregulho rolar pelo telhado. E antes já tinha ouvido passos no quintal.

Cautelosamente o marido acendeu a luz de fora e vasculhou com os olhos toda a extensão do quintal. Depois voltou vencido para o quarto.

-Não há nada lá fora, mulher. Agora dorme.

O mendigo ainda estava lá. Visível. Encolhido na porta sob a varanda.

Saiu então chutando pedrinhas, ganhou as ruas silenciosas. Não sabia mais para onde vagar. A casa era sua, a mulher era sua, a noite era sua. Mas a vida não era mais sua. E estava ainda muito fraco para lutar pela sua alma.

Não consigo escrever

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Na sala de aula, o menino tremia todo metido atrás da carteira.

A folha na mesa, lápis, borracha, e a carranca da professora fuzilando suas trinta e poucos vítimas prontas para o holocausto.

Prova de redação! Dia tenebroso!

-Vinte linhas, introdução, desenvolvimento, conclusão, não esquecer título, atentem para a coesão, a ortografia, a concordância, a ACENTUAÇÃO GRÁFICA...

A cada palavra, a cada gesto, a molecada ficava mais retesada na cadeira, olhos arregalados - o terror espalhara-se e estabelecera um silêncio medonho, catacúmbico.

-E nem um pio! - finalizou a professora implacável, deliciada ao ver o massacre do qual somente sairiam dois ou três sobreviventes mais afeitos aos rudimentos da gramática...

Machado de Assis (sim, o garoto chamava-se assim) não suportou o baque. Heroico, tentou com toda a energia do seu espírito empreender a façanha de retirar do seu cérebro uma redaçãozinha que fosse.

Mas nada! Mordeu o lápis, espremeu o cérebro, e não conseguiu traçar uma palavra sequer. Desesperado, desabou num berreiro, colocando toda a sala em alvoroço.

O inspetor veio, levou o garoto, deu-lhe água com açúcar e chamou o socorro.

Na carteira, o papel - tão alvo e limpo como antes - o lápis e a borracha ao lado.

Machado de Assis só conseguiu enxergar uma utilidade na escrita quando, mais tarde, conheceu a menina dos seus sonhos e precisou mandar um bilhetinho de amor para ela.

E assim o fez. E com maestria.

O grande duende (miniconto)

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O grande duende era mesmo um fanfarrão.

Saiu das matas e foi diretamente habitar uma assobradada mansão de um Mestre Maçom.

Nunca consegui manter-me sério ao lado dele. Era hábil em apanhar os ridículos alheios e transformá-los em alcunhas e anedotas de fazer rir o mais grave dos homens.

Até que um dia, escondido entre os víveres despachados numa anônima campanha de fraternidade da loja, o grande duende acabou saltando na casa misérrima de um braçal da periferia.

A penúria ali era gritante, trágica, medonha.

A partir desse dia o duende fanfarrão nunca mais recuperou seu bom humor. Vivia amuado.

Era o fim do elemental. Era hora de se humanizar.

O amor e a bebida

"O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso".
(Madre Teresa de Calcutá)

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Ela estava sob forte efeito do álcool.

Tenteante, apoiou-se na parede, levou à mão ao busto e, sem poder conter o fluxo, regurgitou todo o banquete da noite.

-Estou mal! - ela declarou, pálida.

Fez uma cara de repugna: a boca estava amaríssima, na ponta da língua sentia o azedume do suco gástrico.

O namorado abraçou-a, compadecido:

-Eu te alertei, amor! Você sabe que não deve.

O amor dele superava o fantasma do alcoolismo que acompanhava a garota desde os primeiros anos da adolescência.

-Eu vou parar! - ela disse numa convulsão de choro. Eu preciso parar!

Na calçada, sob a claridade das luzes dos postes, ele abraçou fortemente sua trôpega amada.

Beijaram-se. Longamente. Intensamente. Uma amálgama acérrima de saliva, vodka, resíduos de aspargo, vitela e creme de chantilly revolucionava entre as bocas febris.

Era um amor puro, verdadeiro.

Uma embolia repentina fê-la rechaçar o amante bruscamente. Ela não pôde conter-se. Um jacto de vômito atingiu a face dele, respingando pontículos do parmesão, do palmito e do champignon no seu terno alvo.

Como um eterno amado, ele aguardou pacientemente que a garota se recompusesse, para trazê-la novamente a si e dar-lhe novo beijo e umas cápsulas de antiácido.

Galão D'água (texto de Patrícia Hakkak)

Ela estava lá, hirta de tanto medo, molhada de suor, e lhe corria um frio pela espinha...
Ele então, que sabia ousar e muito de seu poder de chefe, gritou, esbravejou e cobrou, de novo, aquela produção, aqueles números. "Onde estavam as vendas?" Perguntava ele, com tom sínico no olhar, verde de arrogânica... "na sua gaveta?"
Saiu, da sala, via diante de si uma onda jorrando em lágrimas... perdidas...revoltas...não viu aquele galão de água, que tantas vezes lhe matara a sede, onde tentava calcular como conseguir mais vendas. E o estribuchou, rachou e vazou como sangue de um morto, toda a sua água existente...
Ficou fora de si, revoltou-se como o mar revoltado de seus olhos, com o grito dos companheiros, e finalmente deu vazão ao seu surto, gritou, esbravejou, vociferou... "vocês, que vendem, vendem a alma, ou a cama?
Pegou a bolsa e fina e educadamente, visitou o chefe.
Aquele hashi que lhe servia únicamente para prender os cabelos, foi violentamente metido na jugular, a parte fina entrou, o sangue jorrou, e ele também já sem vida como aquele galão já sem água, tombava seco.

João Bobão

João Bobão era o seu nome.
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João de batismo e Bobão de alcunha, não era à toa que o chamavam assim.

Sua vida era sorrir. Um sorriso constante, sem causa aparente, lá ia João Bobão pela vida, rindo feito bobo, e fazendo os outros rirem também de si.

Nada para João Bobão estava ruim. E viesse a inflação, e a peste, e a fome, e o partido da oposição a ganhar o pleito; e houvesse reajuste no gás, na luz, na água, no telefone; e tudo estivesse ruim, péssimo, lastimável - e João, o Bobão, lá estava com aquele riso bobo na cara, incólume e alheio a tudo.

João Bobão era o típico cidadão pacífico idolatrado pela política. Não tinha voz, não tinha boca, não tinha punhos. Tinha só aquele sorriso bobo. Esse era seu patrimônio. Sua marca. Seu eu.

Até que um dia sopraram-lhe uma piada mal contada.

Então tudo mudou.

João Bobão fechou a carranca. Carregou os sobrolhos. E partiu pra luta.

Odiado pelo mundo, pela política, trocaram a alcunha. Agora chamavam-no João Enfezadão.

E João Enfezadão passou a ser alguém na vida.

A grande risada

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Todos se voltaram para ele na pizzaria.

Não se sabe porquê, mas de repente, ele começou um gargalhada ruidosa, convulsiva, preocupante.

Como que tomado por alguma entidade pernóstica, ele batia os punhos na mesa, sapateava, revirava todo o corpo, como se aquele acesso de risada nascesse no centro do seu organismo e se irradiasse até às extremidades.

E ria. Ria alto. O fôlego curto. Os olhos cerrados.

Desequilibrando-se, tombou com a cadeira, levou a mão ao ventre, encolheu-se todo, rolando no chão - e rindo.

Agora ele inspirou preocupação. Vieram alguns curiosos. E viram, também um sorriso maroto, sobre a mesa do nosso gerador de gargalhadas, uma tira de jornal, e a manchete bombástica:

"CPI conclui os trabalhos. Ninguém foi cassado."

Sobre a mesa, uma pizza. E rolando no chão, um assessor de gabinete.

Ali tinha pão. Ali tinha circo. Mas não para o povo.

Um sonho bem geriátrico

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O velho dormia no sofá. Sonhou com uma touca de lã, pantufas e fraldões.

Acordou assustado e suarento. Quis beber uma dose de cachaça mineira, comer um bom mocotó com farinha, ir à praça ver as mulheres de bela carnadura.

A enfermeira particular ralhou com o velhinho:

-Cachaça mineira: não pode!

-Mocotó com farinha: não pode!

-Ver mulheres na praça: não pode!

E trouxe-lhe com zelo cruel sua touca de lã, suas pantufas e um formidável fraldão.

Os sonhos sempre se tornam realidade.

O jumentinho

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Conta a história que, logo que Jesus desceu do jumentinho na sua entrada triunfal em Jerusalém, seus discípulos entregaram o animal a um criado que o conduziu – o jumentinho – a um pasto verdejante nos limites da cidade.

Lá, refestelando-se de grama verde e suculenta, dizem que um belo alazão veio até ele e, cheio de inveja, falou:

-Você sabia que você conduziu o maior dos Profetas, o Rei, o proclamado Messias de Israel até à entrada do Templo?

O jumentinho respondeu, sem sequer levantar a cabeça, tão ocupado estava em saciar sua fome com a grama saborosa:

-Não, não sabia. Nem conheço muito Esse Profeta ou Rei ou Messias de quem você está falando.

-Não conhece! – replicou o alazão inconformado. Toda terra de Israel já ouviu falar desse grande homem!

E, aproximando-se mais do jumentinho, questionou cheio de curiosidade e em tom confidencial:

-Diga-me, caro jumentinho: o que te disse Ele, o profeta, o Rei, o Messias, para que você então O levasse até à entrada do Templo?

-Não disse muita coisa – respondeu o jumentinho ainda com a grama verde na boca. Só pediu que eu o conduzisse, e em troca me daria o pão de que necessito para minha vida. Eis-me aqui. Ele cumpriu o prometido.

O palhaço

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No camarim, o palhaço não estava nem um pouco disposto a trabalhar naquela noite.
Tinha acabado de receber a notícia da morte da mãe. Ele estava longe, muito longe da sua terra. E o dono do circo, um russo arrogante, nem quis ouvir as lamentações do palhaço.

-Você tem que fazer rir, Palhares. A coisa anda mal... O circo está em dificuldades. Deixemos que os mortos enterrem seus mortos.

Palhares acabava de dar os últimos retoques na cara. Com o lápis, fez uma grande lágrima preta no canto do olho.

O circo estava lotado. Mal irrompeu no picadeiro, pôde perceber pelos aplausos mais um vez o quanto ele era importante para toda aquela gente.

Não há circo sem palhaço. E não há palhaço sem alegria.

Nunca Palhares foi tão engraçado. Mergulhando como nunca em sua arte de fazer rir, procurou esquecer sua tristeza e sua miséria. E no seu íntimo pediu perdão à sua mãezinha por não poder estar com ela naquele momento.

Depois de arrancar gargalhadas estrondosas da arquibancada, Palhares reverenciou o público, encerrando o seu número.

Nesse instante, misteriosamente, uma velhinha invadiu o picadeiro e o abraçou efusivamente. Depois, olhando o palhaço no fundo dos olhos, murmurou, enquanto retirava com a mão a pintura da lágrima negra feita à lápis.

-Não chore, meu filhinho. Você tem uma bela missão a cumprir nesse mundo: transformar nossas tristezas em alegria. É a sua arte.

Sem que ele pudesse ter qualquer reação, ela mergulhou novamente no meio da platéia.

O palhaço nunca mais a viu. Mas, a cada sessão, a cada dia, sentiu que sua arte era o novo legado daquela velhinha, simbolizando o último adeus da sua mãe.

O Deus-querubim

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O querubim tornou-se Deus e substituiu o Criador, que não via a hora de se aposentar.

Sentou-se no grande trono. Pendeu a cabeça cheio de fastio. Olhou o mundo lá embaixo, cheio de lutas, desgostos e amarguras.

Agora era Deus. E suspirou, novamente cheio de fastio.

Cochilou por alguns milênios. E olhou novamente o mundo lá embaixo, ainda cheio de lutas, ainda cheio de desgostos, ainda cheio de amarguras.

Alguns poucos tornaram-se anjos, arcanjos ou demônios. Alguns poucos... E nenhum querubim.

Ainda era Deus. Novo suspiro, o fastio chegava a entorpecer suas juntas.

Um novo e milenar cochilo. Acordou então assustado: um novo arcanjo o chamava, novo candidato a Deus.

-Não via a hora de alguém chegar! - declarou esticando as pernas e se espreguiçando com a desenvoltura de um deus.

Entregou o cetro ao recém-chegado. Pôs-lhe sem cerimônias na fronte a coroa e saltou do trono sem demora.

-O lugar é teu.

E olhou cheio de cobiça o mundo lá embaixo, naturalmente cheio de lutas, desgostos e amarguras.

E mergulhou nele, habitando a pedra, o vegetal, os animais e o homem...

A pança do Sr. Noel

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O Papai Noel, mais gordo do que nunca, acabou entalado numa chaminé na primeira casa da Noruega que visitou na noite de Natal.

-Que enrascada! - pensou o velho rotundo, pigarreando irritado debaixo da coifa.

Pela manhã o menino encontrou sob o pinheiro o seu sonhado soldadinho de chumbo e uma carta assinada pelo bom velhinho:

"Teu soldadinho de chumbo. E um pedido ao engenheiro da casa: projete chaminés mais largas".

No ano seguinte, uma cartinha chegava ao Polo Norte:

"Neste Natal quero um kit contendo: barras de cereal, caixas de flocos de milho e um pote com muita granola".

E abaixo:

"E o engenheiro recomendou que contrate um trainner e matricule-se numa academia. Segue anexo o cartão".

O nome da amante

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Haviam se conhecido há duas horas num barzinho.

Já na cama do apartamento, de súbito, ela esbofeteou sem dó seu parceiro.

-Cafajeste! - berrou histérica.

Nua, ajoelhada sobre o leito, estava irreconhecível.

-O que aconteceu, amor! - ele colocou a mão sobre a bochecha afogueada.

-Eu não me chamo Mary, me chamo Marília! Traste...

Ele tentou envolvê-la novamente, dizendo que não tinha tido a intenção, que a desejava...

Nada adiantou! A garota estava irredutível.

Em poucos segundos ela já tinha entrado na calcinha, ajustado a minissaia, calçado as sandálias e acertado o cabelo. E saiu, tesa, nariz empinado, sem sequer olhar para trás.

Mas... se esqueceu da bolsa, voltou, tomou-a das mãos do amante, e viu caída ao lado sua identidade.

E viu, perplexa, que o “lia” de Marília estava formidavelmente ocultado por um papel grampeado ao documento.

-Oh... - a garota sussurrou, olhando no fundo dos olhos do ex-futuro-amante.

-Olhei tua identidade no chão quando você se despia pra mim - ele mentiu oportunamente. Você nem me disse teu nome no barzinho...

Derretida, ela entregou-se de corpo e alma ao seu parceiro, como se isso fosse um lenitivo à injustiça que julgava ter cometido contra o "pobre" amante.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Quando os demônios erram

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Depois de quinze longos anos, eles se reencontraram.

-Senti tua falta. - ele disse, já casado.

-Eu também. - ela respondeu, também já casada.

Amaram-se num motelzinho à beira da estrada.

Os demônios cantaram, em coro:

-Temos mais duas almas!

Eram demônios inexpertos. A esposa dele, e o esposo dela, já tinham também um caso antigo.

O caso foi levado ao Altíssimo. E o Altíssimo os admoestou:

-Ah, demônios, demônios... Até quando irei vos suportar! Um mal não anula outro mal. Os quatro são vossos, não vedes?

E os demônios então bateram palmas, lamberam os beiços e tornaram a cantar, em coro:

-Sim, sim, então temos mais quatro almas!

E nunca mais confundiram a profunda questão do carma.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O canto e a sereia

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A sereia, moderninha, sonhava conhecer a terra.

-Os humanos são traiçoeiros. - alertou a mãe.

A sereia não se convenceu. E na primeira oportunidade fugiu rumo ao Continente.

Foi sua ruína.

No primeiro cais por onde se esgueirou, ouviu o canto de um estivador barítono. Ele executava em falsete uma estrofe da música We Built This City, da banda Starship.

O canto, como a letra, era horrÍvel, insuportável, irritante. Mas a sereia postou-se encantada. E se apaixonou perdidamente pelo bronco estivador. E foi feliz, escravizada por ele.

Um dia, ouvindo Addio Fiorito Asil, na voz admirável do tenor Andrea Bocelli, tapou os ouvidos de sereia. Achou o canto insuportável. E se suicidou com um berro seco e estridente.

O burro

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O burro cresceu sonhando ser asno ou jumento.

Uns diziam que era melhor ser asno. Outros, jumento.

E depois de pensar, pensar e pensar, o burro acabou decidindo que queria ser mesmo asno.

Após exaustivos esforços, finalmente tornou-se asno. Mas não estava satisfeito. Julgava-se novo, cheio de vigor e potencial. E então, já asno, sonhou tornar-se também jumento.

Nova escalada, árdua, íngreme, longa - e após merecidos esforços, conseguiu tornar-se também jumento.

Estava já velho e realizado, quando foi abordado por um burrico, que lhe perguntou:

-Senhor asno e também jumento, após uma vida toda de estudos e determinação para alcançar seus objetivos, o que concluis sobre a nossa trajetória nesse mundo, agora que és um sábio?

O asno, também jumento, suspirou e respondeu muito sabiamente:

-Tornei-me asno. Também sou agora jumento. Mas te afirmo, caro jovem, que sempre fui um BURRO, sou hoje genuinamente um BURRO, e nunca deixarei de ser um BURRO!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Não serve!

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O neófito entrou no templo emocionadíssimo

.Agora era quase um iniciado.

Enfiado num túnica negra, com capuz, penduricalhos - ele tentou relembrar os 437 itens do ritual que teria que executar, passo-a- passo, para receber finalmente a sagração pela boca do grão-mestre.

Uma implacável assembléia de homens gravemente eretos formava um maldito círculo ao redor do infeliz candidato, à espera de qualquer deslize.

Não, ele não podia falhar!

Com muuuuita cautela, executou quase todos os gestos e palavras cabalísticos que o interminável ritual exigia. Digo-vos quase todos, porque, o derradeiro... ah, o derradeiro, aqui a cobra fumou!

Ele já se ajoelhava diante do grão-mestre, e só faltava um mote latino, o ÚLTIMO, para finalmente receber o seu tão esperado "sacramento". Mas as malditas palavras fugiram da sua mente.

Quase em pânico, fez uma pausa, vasculhou a memória à caça das fujonas - e nada!

Perplexo, ouviu o oficiante soprar-lhe algo: "Felix qui potuit..."

-Felix... - balbuciou o pobre iniciado tentando se lembrar da frase toda. Felix qui potuit... felix qui potuit...

-Não! - berrou o grão-mestre recolhendo a espada e interrompendo o ritual. Não pode repetir "felix qui"! Não serve! Tá fora!

E então precipitaram-no com truculência templo afora.

Sentado na calçada, murcho, quase aos prantos, ele retirou do bolso o extenso papel com a colinha do ritual que usara para memorizar até o último instante. E leu a última linha, a maldita linha que lhe fugira na hora H:

-"Felix qui potuit rerum cognoscere"...

E acrescentou, derrotado:

-Geórgicas de Virgílio, 30 a.C. Eu mereci...

Mãe, o que é prostíbulo?

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A menina de seis anos, vivíssima, saiu da frente da TV e foi abordar a mãe, que estava tomando água na cozinha:

-Mãe, o que é "prostíbulo"?

A mãe levou um puta susto. O copo caiu da sua mão.

-Prostíbulo! Onde ouviu isso, menina?

-Na TV, ora. No programa da Ana Maria.

A mãe não duvidava que ela tinha ouvido isso mesmo no tal programa.

Suspirando fundo, tentou safar-se da situação da melhor maneira que pôde:

-Filhota, prostíbulo é um lugar onde se reúnem mulheres.

-Mulheres?

-É... mulheres... garotas... raparigas (aqui ela tentou uma pronúncia bem lusitana, mas acentuou cada sílaba, aproveitando para mandar aí o seu asco pelas meninas dos extintos meretrícios.

A menina pensou, pensou, meteu o dedinho angelical entre os lábios, pensou mais um pouco, e por fim tornou ao interrogatório de fogo:

-E o que é rapariga?

Aquela conversa já tava ficando embaraçosa.

-Rapariga... rapariga... ah, filha, é um termo que, aqui no Brasil, significa menina que pinta-e-borda.

Os olhos da moleca brilharam agora. Atavicamente prendada, sem esperar qualquer outra elucidação materna, deu um salto e, cheia de contentamento, declarou:

-Ah, mãe, então eu também quero ser RAPARIGA!!!