sábado, 12 de fevereiro de 2011

A arte e o vômito.

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O cara tava carregado de inspiração.

O braço, petrificado como uma rocha, dava um bruto contraste com a mão e os dedos que tremulavam sobre a mesa. Nunca vi coisa parecida.

Dera-lhe um toco de lápis. Ele meteu-se a garatujar a folha, louco, muito louco, apertando a ponta no papel ao ponto de rasgá-lo.

E quebrava a ponta dum lápis, e lhe davam outro. E às vezes, no transe, vinha a amassar as folhas, esmurrando a mesa e lançando a grafite longe, violentamente.

O transe durou três longos minutos. E desse pandemônio mediúnico saiu um belíssimo soneto, parnasiano, tão ininteligível quanto as mais belas redondilhas dos mais ensandecidos bardos.

-É Bilac! - proclamavam uns, cheios de espanto.

-Não! É arte de Píndaro! - retalhavam outros.

-Ora, Píndaro já voltou à carne. Meteu-se nos obscuros corredores da Psiquiatria. Se não é Bilac, é Manoel da Nóbrega.

-Arre! Padre Manoel não tem apreço aos preciosismos. Ele tem lucidez de senador romano...

Nesse ínterim, o médium lançou uma gargalhada, estremecendo as paredes alvas do edifício. E subscreveu a mensagem que encetara a polêmica:

"João José, obscuro, ignoto, indigente sepultado em vala comum, poeta de papéis de pão, com incursão à Terra precedente de Bilac, Publius Lentulus ou qualquer poeta tebano. Impublicável por sua própria deliberação".

E, finalizando, rasgou em milhões de pedacinhos o raríssimo soneto, ao que recitou muito sardônico:

-A Arte é tão efêmera quanto a Vida.

E aquela imita esta, e a precede,

E a vomita.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

João Meladão, um ladrão de calcinhas

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João Meladão finalmente foi pego com a boca na botija, ou melhor, com as mãos na calcinha.

Dona Gertrudes já estava cismada há algum tempo, e resolveu montar tocaia. Estava farta de ter que comprar calcinhas para repor as que vinham sumindo misteriosamente do varal.

O tarado acabava de puxar uma das peças quando ouviu ela berrar com toda a estridência de uma dona ultrajada:

-Ladrão de calcinha! Pega!

João Meladão pulou a cerca igual a um gato assustado e mergulhou no matagal fundo que se estendia do outro lado da rua, levando consigo a preciosa calcinha.

Aboletada na cadeira, deram-lhe água com açúcar. Ela tremia de medo e ódio:

-Uma calcinha cara, rendada, vermelha! A preferida do Jucão. – lamentava a robusta mulher em meio às trouxas de roupa suja ainda por lavar.

Jucão, o maridão, ficou sabendo de toda a presepada. Não pensou duas vezes ao sair no rastro do covarde.

-Roubar calcinha de mulher alheia! Eu mato esse desgraçado!

João Meladão era um sujeito bem conhecido do vilarejo. Beirando os trinta, espigadão, lento das idéias e olhar aluado, era o que parecia de mais inofensivo naquele fim de mundo.

-Ele pode ser tantã – grunhiu o marido – mas sabe bem o que faz. Eu acerto o passo desse maldito.

Saiu armado com cano e com faca. Sabia onde encontrar o infeliz.

-Eu preciso devolver a calcinha da dona Gertrudes!

A voz vinha de dentro do casebre, no final da rua da igreja matriz. Era a casa do João Meladão.

Jucão deslizou pela parede feito um jagunço. Parou numa fenda da janela. Dali pôde ver todo o cenário dentro do pardieiro.

João Meladão estava sentado numa banqueta, cabeça baixa, arcado sobre sua própria desolação. À sua frente, sentado noutra banqueta, o padre admoestava severamente o ladrão de calcinhas:

-Você já pensou o vai acontecer, agora que você foi flagrado pela dona Gertrudes?

O tarado começou a chorar feito criança:

-Eu não queria fazer isso, padre. É mais forte do que eu.

E começou a desfiar toda a miséria que ia na sua alma:

-Não consigo limpar da mente minha infância, meu pai violentando minha mãe e minha irmã na minha frente. O sexo pra mim se tornou uma coisa imunda.

-Depois, quando eu completei quinze anos, ele me levou no prostíbulo e me obrigou a transar com as prostitutas. Mas não consegui nada.

-Elas zombaram de mim, esfregaram as calcinhas na minha cara, me chamaram de frouxo.  Nunca consegui transar com mulher nenhuma. Hoje até sinto algum desejo, mas não tenho ereção.

João Meladão sofria, na verdade, de disfunção erétil e ejaculação precoce. Aquele fetiche parecia compensar, num desvio sexual, as suas restrições funcionais e afetivas.

Ele então estendeu a calcinha ao pároco:

-Eu te peço, padre: devolve a calcinha a dona Gertrudes. Diga que estou arrependido.

O padre tomou a calcinha, constrangido. João Meladão foi até um baú e de lá retirou mais um punhado delas.

-Estas também são dela.

Mas não teve tempo de entregá-las também ao padre. Num átimo, um vulto pulou quarto adentro e riscou com a faca a jugular do tarado.

O padre deu um grito de pavor. A vítima caiu, tentando estancar com as mãos as artérias donde jorravam dois jatos medonhos de sangue.

João Meladão morreu ali mesmo, caído entre as calcinhas embebidas em sangue.

Limpando a lâmina na camisa do cadáver, Jucão ainda rugiu do alto do seu brio de marido ultrajado:

-Infeliz! Pode ficar agora com as calcinhas. Faça bom proveito.

E, recolhendo a faca na cinta, saiu pisando duro. Vingado. Honrado.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O abutre pousou no telhado da casa.


O abutre pousou no telhado da casa.

Que abutre horroroso! Negro como uma gralha, vergado, deu três saltos agourentos na cumeeira e esvoaçou até aos pilares da varanda em frente à choça.

A porta se abriu num rangido gemebundo. Nheeeeecccccc! E o abutre, tal quais os nossos carcarás saltitantes, mergulhou no interior da casa cheio de curiosidade.

Ali era só desolação. Poeira, calhamaços velhos espalhados pelas estantes e um silêncio úmido que dariam arrepios no mais intrépido aventureiro.

O bicho vasculhou todos os cantos da casa. Estranho! Ali não havia carniça. Ainda assim empoleirou-se numa das quinas duma estante e ficou grasnando, inquieto, a perpassar seus olhos de rapina por todo o caos.

Morreu ali, só, vomitando langanho como um sentinela naquela biblioteca-fantasma.

Nunca vai se compreender os abutres, o porquê eles cultuarem a morte e tudo o que a representa.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Um certo caso de PENSAMENTO NEGATIVO.

Foi minha primeira namorada.

Bem, ela não sabia disso. Mas era minha namorada.

Eu tinha dezesseis anos. Ela quinze. Eu já tinha experimentado outras paqueras (hoje é o ficante) antes. Mas tudo ficou sem graça e sem sabor quando eu conheci ela - por isso digo que foi minha primeira namorada.

Ela era comprometida, e há muito tempo. Namorava sério um carinha que cresceu morando na mesma rua que ela, amigos de infância, depois namorados, depois planos de se casar e montar casa e ter filhos e envelhecer juntos.

Eu amava ela. Mais que tudo. Ela era meu chão, meu céu e meu EU. E ela não sabia disso.

Sofri calado durante todo o ano escolar. Era timidíssimo. Um poço de timidez. E ela deixava esvoaçar o cabelo, fazia pose, ria-se e brincava e vivia de forma sadia - totalmente alheia ao meu sofrimento.

Um dia me declarei. Não a ela, mas à sua amiga, com a qual eu contava com certa proximidade. A amiga contou à pretendida (pretendida? Era algo morbidamente platônico).

A beldade mandou recado de volta: "Eu nunca poderia imaginar... Ele é tão quietinho". Foi tudo que eu podia esperar dela. Nada mudou. Eu mereci esse purgatório de quase doze longos meses.

No final do ano letivo, ela se debatia em meio a algumas notas baixas. Corria risco de reprovar. E caiu na matéria para fazer a última e decisiva prova.

A menina abateu-se a olhos vistos. E murmurava, quase numa prece, quase num mantra, meneando a cabeça:

-EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!

Por um mecanismo de estranha empatia caí ao seu lado, condoído. E a cada mentalização dela, mais eu a amava.

EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!

O ano se foi. Ela reprovou. Eu deixei de amá-la com mesma intensidade e rapidez com que a amei. E hoje, ao me lembrar dela, só me recordo da sua frase que ela repetia tão firmemente:

EU NÃO VOU CONSEGUIR!!!